O beicinho e o bater dentes

Flavio Musa de Freitas Guimarães
7 min readOct 20, 2022

Texto inteiro; desisti de fazer série de Short Forms

E, por causa deste cara, fiquei com o cacoete.

Eu escrevi o “Who I am” em inglês. Vou publicar o “Quem sou eu” em português.

Lá está o parágrafo que explica o título deste texto.

Quem o leu, sabe que Darilma morava na casa ao lado; ela era bonita e graciosa, eu gostava dela, conversávamos, fazíamos palavras cruzadas, e ela tocava piano para mim. No “who I am” disse que eu não sabia namorar, e que só fui entender o porquê depois de muitos anos de psicanálise.Nunca saíamos a sós, nunca fomos ao cinema; mas ela dizia que adorava o beicinho do cara.

Fui conferir

Fui assistir um filme dele.

Havia dois nos cinemas no domingo: Amarga Esperança (They Live By Night), sessão das 10, e Festim Diabólico (The Rope); este, jamais!

Assisti Amarga Esperança, já sabendo que não iria gostar do filme, mas queria ver o beicinho do Farley Granger em ação.

Não entendi o que ela via em seus lábios, mas voltei para casa já treinando puxar o lábio inferior para fora.

Almocei, fui me sentar na salinha de estar que tem uma janela virada para a casa da Darilma.

Abri Guerra e Paz, na página em que estava o marcador.

Ouvi Darilma tocando piano para um alguém, conversando, e dando risadas.

Bati a janela com violência!

Batendo dentes

Do blog de Dr. Paulo Varella

Foi a primeira vez bati os dentes, com força, puxando o beiço ainda mais para baixo.

Minha mãe veio correndo,

̶ Flavio! O que aconteceu?

̶ Não consigo ler com esta barulheira!

Minha mãe só disse,

̶ O Eduardo está dormindo.

Ele já tinha mais de sete anos…

Creio que ela pensou que o fiz por ciúmes.

Não foi; foi desespero de perder a chance única de ter uma mulher com quem eu pudesse aprender a namorar; possessividade.

Fechei portas da sala, banheiro, cozinha, fui para meu quarto, abri a janela que dava para a rua lateral, onde morava Ziembinski.

Maravilha! Ele, que sempre trabalha no teatro todos os sábados e domingos, por acaso estava em casa; fui ler ouvindo suas músicas clássicas maravilhosas, de seus vinis de 12 polegadas, executadas por seu conjunto impressionante de alta-fidelidade.

No dia seguinte

Continuei lendo; algumas vezes, institivamente, batia os dentes e esticava o beiço.

Adormeci lendo o livro; minha mãe me disse que eu precisava ir ao dentista, porque eu estava com bruxismo; escutou-me raspando os dentes no sono.

Cheguei da escola ao meio-dia; tive sorte, peguei o ônibus que ia saindo da Praça da Liberdade e o trânsito estava fluindo bem.

Praça da Liberdade hoje; naquele tempo as filas de ônibus ficavam onde estão as tendas em seguida à Igreja Das Almas Dos Enforcados, e na rua de trás, Rua dos Aflitos.

Minha mãe sempre me esperava para almoçarmos juntos; eu de minhas aulas mal-dadas, fracas e insossas, à exceção das de física; ela de sua trabalhosa e rica manhã, das pessoas que a vieram visitar e pedir conselhos, dos trabalhos para conseguir construir uma igreja no Jardim da Saúde, conversas com a vizinha Marilda, mãe da Darilma…

̶ Flavio! Isto não é bruxismo! Você está batendo os dentes de dia! Por que?

Eu nem tinha me dado conta.

̶ Não sei, mamãe; me aconteceu também na aula do fedido, chato e raivoso Frei… (prefiro não citar o nome do pobre coitado).

̶ Quando nervoso e com raiva que não podia expressar, entendo; mas aqui estamos tão relaxados e tranquilos…

̶ É verdade; não sei o motivo, parece ter virado um cacoete.

̶ Trate de acabar com ele: é desagradável.

Escutei o Opel de Seu Otto

Opel 1942 — Imagem do site Opel

, pai da Darilma, entrando na garagem; quando tinha uma folga na Byington e Cia[1], que foi a razão do nascimento da Fazenda Itahyê[2],

ou um serviço que fosse executar perto do centro, ele a trazia do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo[3].

Escutei sua voz, alegre, contando para sua mãe e seu irmão Carlos (Carlinhos) seu sucesso,

̶ Mamãe! Fui promovida para o terceiro ano!

E foi almoçar.

Segurei o cacoete, fui para o escritório fazer as lições. Escapou uma batida de dentes.

̶ Flavio!

̶ Desculpe. Estou me esforçando, este escapou.

Depois de almoçar e contar os detalhes de como e porque foi promovida para mãe e irmão, atravessou, pela porteira que meu pai e Seu Otto fizeram no muro que separava nossas casas, quase ao fim do terreno,

̶ Dona Bebé, onde está o Flavio? Preciso contar uma coisa para ele.

̶ Está no escritório fazendo suas lições; vá lá; ele vai ficar contente.

̶ Flavio!

Não precisei força para não bater os dentes.

Sentou-se na cadeirinha estreita, que foi o que coube no escritório além da mesa e minha cadeira, e disparou a contar como tinha sido, quem foi chamá-la para a levar à diretoria…

Eu, com sinceridade e entusiasmo, a ia cumprimentando.

Não veio o cacoete, mas não me esqueci de pendurar o beiço; mas ela, parece, não notou.

Três anos depois

Três anos que correram rápido, como os relembro agora, certamente não naquela época.

Continuei a bater dentes.

Seu Otto nos levava a passear: Uma vez nos levou a todos a Santos e São Vicente, seis espremidos no Opel! Não bati dentes no caminho.

Darilma passou para o quinto ano, Carlinhos entrou no Ita em 1953, eu entrei na Poli e no CPOR em 54. Só podia descansar nas folgas de três em três meses do CPOR; eu tinha que recuperar energias, e ainda fazer trabalhos da universidade deixados para trás.

Setenta e seis anos depois

Casei-me com a Darilma, descasei-me e continuamos nos amando, nos falando e visitando sempre, diretamente ou através de nossos três filhos — ela nunca aderiu ao celular — nos vemos, através deles, por vídeo.

Aprendi a namorar: quem nunca comeu melado…

Adorei e adoro as mulheres; as admiro, respeito. Fui feliz namorando muitas, todas de mim gostaram (creio que ainda gostem), com algumas ainda converso, por mensagens ou telefone.

Tive paixões maravilhosas em que aprendi muito.

Numa uma acabei me casando.

Passei quatro semanas a sós com meu filho raspa de tacho em seu sítio; esposa e filhos estavam pela França, ela revendo pais e amigos, a filha, de quase oito anos já os conhecia e fala fluentemente o francês; o menino, dois anos e meio, se enturmou com avós e tantos primos, se comunicou e, quando voltou, fala francês misturado com português; uma gracinha; inteligente pácas.

Eu lá fui, não só para estar perto dele, mas para ajudá-lo, como podia, nas construções complementares — na verdade suplementares — de sua casa.

Ele, agricultor, acordava — como sempre — às cinco e meia, ia buscar forragem para o gado, alimentava os cachorros, os porcos, as galinhas, o cavalo. Eu, quando não estava muito frio (caramba, era inverno e lá faz muito frio) ele me acordava às oito; muito frio? Às nove e meia. Cansados, dormíamos às dez da noite.

Se eu acordava às oito, ia ajudá-lo a encher sacos de forragem; oito normalmente, 16 se havia previsão de chuva nos próximos dias, ou se iríamos sair no dia seguinte.

Ceio que tenha sido na segunda semana, ele foi me ver na cama, eu ainda semi-dormindo,

̶ Pai! Você está batendo os dentes com força, você está com bruxismo.

̶ Bruxismo não é, filho, mas não sei porque isto voltou!

̶ Voltou? O que é então?

̶ Um cacoete que tive há muito tempo, e de que me livrei completamente; não sei porque reapareceu agora.

Na época do cacoete, eu ajudei bastante na ampliação e reforma de nossa casa no Jardim da Saúde, eu então jovem e forte, ajudei muito, levantei paredes, vez por outra a Darilma vinha ver admirava o que eu sabia fazer, e dizia “Cuidado para não cair!”. Eis que quando eu estava assentando a última fiada da parede interna do aumento da cozinha, o tijolo escorregou, saltei a tempo, caí em pé, mas luchei o tornozelo direito; sem problemas: no dia seguinte terminei o trabalho.

Ali, eu ajudei a ele na construção de uma nova cozinha-sala de refeições externa bem grande, com forno e fogão a lenha.

Ajudei-o levantar paredes lhe entregando tijolos, entregando e pegando ferramentas para a construção da estrutura do telhado, depois, lixando os tijolos de paredes internas e externas.

Teria sido por isto?

Na noite seguinte, jantámos na mesinha de fora — como sempre, se não estava muito frio e sem vento -,

̶ Pai! Este cacoete é muito desagradável.

Ele não poderia reparar que eu esticava o beiço…

̶ Concordo; vou dar um sumiço nele.

O cacoete escutou o vozeirão de meu filho e sumiu mesmo.

Quando olho no espelho esta cara envelhecida, que tem leves traços da antiga,

Eu sou o do meio, de camisa branca e terno escuro.

olho e me digo:

“É, o beicinho me cai bem”.

[1] https://pt.wikipedia.org/wiki/Alberto_Jackson_Byington

[2] https://itahye.com.br/historia/

[3] https://pt.wikipedia.org/wiki/Conservat%C3%B3rio_Dram%C3%A1tico_e_Musical_de_S%C3%A3o_Paulo

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Flavio Musa de Freitas Guimarães

Already watching the eighty-eight turn of the Earth in curtsy around its King, I’m an engineer that became a writer, happy, in perfect health, body and mind.