Foi o cocô do passarinho bem no meio de minha careca.
Olhei para cima e vi o pequeno invólucro, enfeitado por penas e penugens, azul com papo e peito amarelo, virando a cabecinha pra lá e cá, continuando o trinado harmonioso que eu já escutava antes de ser alvejado.
Tentei um assovio meio trinado; não me deu bola e continuou no seu.
Eu o via, a seus movimentos e trejeitos, o bico que se abria e fechava, mas tudo isto não era ELE! Não podia ser nem o invólucro, muito menos o que este aparentemente continha. Onde estaria ELE?
Pensei que ele também me via, ou melhor, via meu exterior, meu movimento de cabeça, escutara meu assovio desajeitado, e também não saberia onde estaria EU.
Não cheguei a formular mais uma teoria do movimento dos astros, mas o cocozinho abalou meus fundamentos de até então.
Passei eu mesmo a examinar meu invólucro aparentemente delimitado por uma pele, descontínua, porosa, indefinida, variável e em mutação constante e imprevisível em escalas atômicas, cheia de buracos especiais com funções específicas, que me ligam definitivamente ao tudo e a todos. É meu continente, assim pois devassado e devassável, sujeito a muitas coisas, inclusive a cocô de passarinho. Não! Isto não sou EU. Não posso ser o eu que assim me observo.
Vamos tentar então o conteúdo.
Sob a pele tecidos, por baixo alguns músculos, ossos, nervos, fios e canos de variados tipos. Olhos olhando, meio que flutuando nos orifícios do crânio, a chamada massa cinzenta, neurônios, sinapses e que tais, baita rabo descendo do cérebro pela coluna e se ramificando, mandando impulsos e ordens para um montão de órgãos, meu continente e conteúdo chupando ar poluído e devolvendo ar mais poluído ainda, recebendo água e alimentos, usando deles o que consegue e devolvendo tudo bem piorado.
NÃO! Isso tudo não sou EU!